A farmacêutica e pesquisadora Beo Oliveira Leite iniciou sua transição de gênero aos 23 anos, enquanto vivia em Vitória da Conquista, no interior da Bahia. Na época, começou a hormonioterapia cruzada sem acompanhamento médico, devido à ausência de ambulatórios trans acessíveis em sua região. O serviço mais próximo estava em Salvador, onde se concentram os atendimentos vinculados ao Processo Transexualizador pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Atualmente doutoranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Beo aponta que as barreiras para pessoas trans acessarem o SUS têm se agravado. Um dos entraves recentes é a nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), que limita o início da terapia hormonal cruzada apenas para pessoas com 18 anos ou mais.
Beo destaca que essas restrições ignoram o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que assegura o direito de adolescentes a partir de 12 anos participarem de decisões sobre seus cuidados em saúde, inclusive em serviços públicos. “Procedimentos que não sejam emergenciais, mas que demandam acompanhamento especializado, são um direito dessas crianças e adolescentes”, afirma.
A pesquisadora também chama atenção para os impactos dessa exclusão sobre a saúde mental de jovens trans: “É nessa faixa etária que muitas descobrem sua identidade de gênero. Quando não têm apoio na família ou na escola, o serviço de saúde deveria estar preparado para acolher”.
Além da restrição etária, Beo alerta que o acesso desregulado a hormônios agrava os riscos. “Não é necessário receita médica para comprar esses medicamentos. Então, muitas meninas trans e travestis já fazem uso por conta própria, sem o devido acompanhamento clínico”.
Ela critica a postura do CFM, que considera desconectada das evidências científicas e da política de saúde pública. “As pesquisas mostram que o acompanhamento precoce reduz riscos como depressão e tentativas de suicídio entre pessoas trans”, defende.
“Estamos vendo a institucionalização da transfobia”
A presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Bruna Benevides, também se posiciona contra a resolução do CFM. Para ela, a medida representa um retrocesso institucional que nega direitos fundamentais. “Estamos vendo a institucionalização da transfobia e a negação de um direito básico assegurado pela Constituição: o direito à saúde, que deve contemplar também crianças e adolescentes trans”, afirma.
Bruna aponta ainda o viés ideológico da decisão, citando o relator da norma, Raphael Câmara, que integrou o Ministério da Saúde durante o governo Bolsonaro e esteve por trás de medidas que dificultam o aborto legal. “É parte de uma agenda anti-gênero da extrema-direita, que visa controlar corpos e negar acesso à saúde e à justiça reprodutiva”, critica.
Em resposta à resolução, a Antra e a Associação Mães pela Diversidade apresentaram denúncia ao Ministério Público Federal (MPF), que instaurou um inquérito civil para apurar a legalidade da medida. O MPF já oficiou o CFM e diferentes órgãos do governo federal para prestar esclarecimentos. A primeira resposta do Conselho foi considerada incompleta, e um novo prazo foi dado para que se manifeste adequadamente.
Informações da Agência Brasil